Ouvi
algo assim aqui na aula: “Precisamos nos contrapor a narrativas única de forma
positivada e negativando a narrativa que é trazida” Ah, como eu quis saber
disso antes! Como muita coisa poderia ter sido diferente. Mas também, se assim
fosse a trajetória seria outra...
Sou
nascida e criada na Favela da Maré, hoje rebatizada de Complexo, um nome até
adequado, dado o tamanho e a real complexidade que faz jus ao nome.
Ainda
menina, sem saber bem o que acabara de me acontecer, passei no concurso para a
então 5ª série do Pedro II. Era 1ª vez que me deparava com o mundo fora da
favela. Como era enorme aquele outro mundo para além das ondas da Maré.
Por
anos e anos me envergonhei de morar naquele lugar. Fugia do assunto, nunca quis
ninguém me visitando, fingia e inventava histórias, tudo para que ninguém
pudesse imaginar minha condição social. Mesmo que no Pedro II eu tivesse a
chance de conviver com muita diversidade, até com pessoas mais pobres, eu não
queria viver, me ver e me reconhecer naquele lugar, naquelas condições.
Eu
inventava histórias fantasiosas (que naquela ocasião me recusava a chamar de mentira)
pelo simples fato de não querer fazer parte de uma narrativa negativa que nos
oprime a todos de lá, através da pecha de pobre e de favelado. Quantas e
quantas vezes ouvi, ao se depararem com a verdade, a seguinte frase: “nossa, você
nem parece favelada”. Essa frase doía, mas ao mesmo tempo me fazia pensar que
estava funcionando a minha fantasia, meu disfarce.
Já
na universidade, na vizinha Ilha do Fundão, ficava eu no ponto de ônibus me
escondendo atrás das pessoas, pois todos os meus colegas de UFRJ passavam por
ali, muitos de carro e vindos da zona sul. Era pura vergonha. Até que um amigo
me viu, e no meio de todos fez um comentário infeliz, desses que fazemos
achando que é brincadeira inocente, mas que matam os ouvidos de quem ouve. Saí
correndo a chorar. Outro amigo, um pouco mais sensível, foi atrás de mim e me
deu aquela “lição de moral”, apontando para minha trajetória até aquele
momento, minhas conquistas e superações, afinal, eu era a favelada que a vida
toda estudou em escola pública e estava prestes a me formar numa das melhores
universidades públicas do meu estado. Neste momento, uma nova janela se abriu.
Ainda não era porta, ainda não dava para passar para outro lado, mas através
dessa janela foi possível ver outra narrativa sendo escrita, sendo desenhada.
Formei-me.
Virei e me descobri educadora. Uma feliz e empolgada educadora. Hoje, curiosamente,
ou não, me pego narrando essa história aos meus educandos frequentemente. Não
pela bobajada de virar exemplo para ninguém, não acredito nisso, pois cada um
tem sua trajetória e sua própria narrativa a ser escrita, mas talvez seja para
dizer a mim mesma quem sou, e poder me orgulhar disso. Positivei minha narrativa
ao meu favor e deu certo.
Ah
sim, depois de ter sido “desmascarada” ainda permaneci alguns anos nas ondas
daquela Maré, e pude ainda experimentar o gosto pelo não sofrimento que a
mudança de narrativa interna me proporcionou. É neste ponto que acho importante
contar toda essa história para meus alunos, e agora para vocês, pois lá atrás a
escola não fez isso por mim. Ela não me favoreceu. Ela não me deixou ver que
existiam outras narrativas possíveis, e que aquela condição socioeconômica
(temporária ou não) poderia ter muitas faces, até mesmo a do orgulho ou a da
motivação. Não é para carregar apenas na face da vergonha, do medo, da raiva,
da revolta, da sensação de menos valia, da tristeza, da culpa... coisas que nos
fazem crer de forma opressiva.
Para
nós educadores, cabe a reflexão de que positivar as narrativas talvez seja uma
brecha onde possamos atuar nesta luta por uma cidadania participativa mais
efetiva e mais afetuosa. Os sujeitos em formação precisam, como eu precisei, se
libertar dos rótulos de “pobres coitados”, “desvalidos”, “favelados”, “violentos”,
“incivilizados”... etc. Estejamos certos que a narrativa negativa serve como
uma luva nas mãos do opressor. E, venham de onde vier, os jovens precisam se
perceber socialmente capazes e participativos na construção de seu próprio caminho.
Não necessariamente um caminho para um sucesso material e acadêmico, mas um
caminho cidadão, a quem também se destinam os direitos, mesmo que nos falte
grana. Ninguém, com base em nossa “geografia social” pode nos dizer até onde
ir. Positivar é preciso!
Joyce Alves Rocha
Texto para apresentação no curso "O papel das emoções públicas para a política cultural da democracia" (IFCS, UFRJ, 2017)