sexta-feira, 1 de setembro de 2017

De onde?



Ouvi algo assim aqui na aula: “Precisamos nos contrapor a narrativas única de forma positivada e negativando a narrativa que é trazida” Ah, como eu quis saber disso antes! Como muita coisa poderia ter sido diferente. Mas também, se assim fosse a trajetória seria outra...
Sou nascida e criada na Favela da Maré, hoje rebatizada de Complexo, um nome até adequado, dado o tamanho e a real complexidade que faz jus ao nome.
Ainda menina, sem saber bem o que acabara de me acontecer, passei no concurso para a então 5ª série do Pedro II. Era 1ª vez que me deparava com o mundo fora da favela. Como era enorme aquele outro mundo para além das ondas da Maré.
Por anos e anos me envergonhei de morar naquele lugar. Fugia do assunto, nunca quis ninguém me visitando, fingia e inventava histórias, tudo para que ninguém pudesse imaginar minha condição social. Mesmo que no Pedro II eu tivesse a chance de conviver com muita diversidade, até com pessoas mais pobres, eu não queria viver, me ver e me reconhecer naquele lugar, naquelas condições.
Eu inventava histórias fantasiosas (que naquela ocasião me recusava a chamar de mentira) pelo simples fato de não querer fazer parte de uma narrativa negativa que nos oprime a todos de lá, através da pecha de pobre e de favelado. Quantas e quantas vezes ouvi, ao se depararem com a verdade, a seguinte frase: “nossa, você nem parece favelada”. Essa frase doía, mas ao mesmo tempo me fazia pensar que estava funcionando a minha fantasia, meu disfarce.
Já na universidade, na vizinha Ilha do Fundão, ficava eu no ponto de ônibus me escondendo atrás das pessoas, pois todos os meus colegas de UFRJ passavam por ali, muitos de carro e vindos da zona sul. Era pura vergonha. Até que um amigo me viu, e no meio de todos fez um comentário infeliz, desses que fazemos achando que é brincadeira inocente, mas que matam os ouvidos de quem ouve. Saí correndo a chorar. Outro amigo, um pouco mais sensível, foi atrás de mim e me deu aquela “lição de moral”, apontando para minha trajetória até aquele momento, minhas conquistas e superações, afinal, eu era a favelada que a vida toda estudou em escola pública e estava prestes a me formar numa das melhores universidades públicas do meu estado. Neste momento, uma nova janela se abriu. Ainda não era porta, ainda não dava para passar para outro lado, mas através dessa janela foi possível ver outra narrativa sendo escrita, sendo desenhada.
Formei-me. Virei e me descobri educadora. Uma feliz e empolgada educadora. Hoje, curiosamente, ou não, me pego narrando essa história aos meus educandos frequentemente. Não pela bobajada de virar exemplo para ninguém, não acredito nisso, pois cada um tem sua trajetória e sua própria narrativa a ser escrita, mas talvez seja para dizer a mim mesma quem sou, e poder me orgulhar disso. Positivei minha narrativa ao meu favor e deu certo.
Ah sim, depois de ter sido “desmascarada” ainda permaneci alguns anos nas ondas daquela Maré, e pude ainda experimentar o gosto pelo não sofrimento que a mudança de narrativa interna me proporcionou. É neste ponto que acho importante contar toda essa história para meus alunos, e agora para vocês, pois lá atrás a escola não fez isso por mim. Ela não me favoreceu. Ela não me deixou ver que existiam outras narrativas possíveis, e que aquela condição socioeconômica (temporária ou não) poderia ter muitas faces, até mesmo a do orgulho ou a da motivação. Não é para carregar apenas na face da vergonha, do medo, da raiva, da revolta, da sensação de menos valia, da tristeza, da culpa... coisas que nos fazem crer de forma opressiva.
Para nós educadores, cabe a reflexão de que positivar as narrativas talvez seja uma brecha onde possamos atuar nesta luta por uma cidadania participativa mais efetiva e mais afetuosa. Os sujeitos em formação precisam, como eu precisei, se libertar dos rótulos de “pobres coitados”, “desvalidos”, “favelados”, “violentos”, “incivilizados”... etc. Estejamos certos que a narrativa negativa serve como uma luva nas mãos do opressor. E, venham de onde vier, os jovens precisam se perceber socialmente capazes e participativos na construção de seu próprio caminho. Não necessariamente um caminho para um sucesso material e acadêmico, mas um caminho cidadão, a quem também se destinam os direitos, mesmo que nos falte grana. Ninguém, com base em nossa “geografia social” pode nos dizer até onde ir. Positivar é preciso!
 Joyce Alves Rocha
Texto para apresentação no curso "O papel das emoções públicas para a política cultural da democracia" (IFCS, UFRJ, 2017)



Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto!